06/03/2014
Diário da Manhã
José Geraldo de Santana Oliveira

 

“Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim, e não dizemos nada.

 

 

Na segunda noite, já não se escondem;

 

 

Pisam as flores;

 

 

Matam nosso cão, e não dizemos nada.

 

 

Ate que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.

 

 

E já não podemos dizer nada.”

 

 

O poeta carioca, Eduardo Alves da Costa, no seu belíssimo e emblemático poema da epigrafe, ministra às gerações humanas-atemporais, pela sua perene atualidade-, uma sábia e inesquecível lição sobre a necessidade de se ter coragem e de se lutar sempre, em busca da liberdade, no seu sentido polissêmico, e da construção da cidadania por inteiro-que não é possível sem a plenitude daquela-, e que se constitui nos fundamentos sobre os quais se assenta a República Federativa do Brasil, como se acha escrito, com letras indeléveis, no Preâmbulo da Constituição de 1988, que representa a síntese de seus comandos e objetivos.

 

 

Pois bem. Desde a Constituição de 1937, com ênfase no tenebroso período da ditadura militar, de 1964 a 1985,- uma grande farsa, que se transformou na maior tragédia da história brasileira, ao menos no século XX-, a sociedade brasileira repudiou, com vigor, a sistemática e rotineira intervenção do poder público na organização sindical. Só o famigerado regime político, imposto pela citada farsa, interveio em mais de  1.500 entidades sindicais, afastando as suas diretorias, na maioria das vezes, legitimamente eleitas. Isto sem contar que por meio da catastrófica Portaria do Ministério do Trabalho (M T E) N. 3.437, cada passo das entidades sindicais, de todos os graus, era vigiado e controlado pelo Poder Público, que, em uma palavra, dispunha de autorização legal para decretar o nascimento, a vida e a morte destas.

 

 

Após longas e longevas batalhas, que duraram muito mais do que as mil e uma noites, da lenda árabe- que custaram reiteradas agressões, prisões e mortes de sindicalistas-; felizmente, a Constituição de 1988 (CR)- a Constituição cidadã, nas felizes palavras do incomparável estadista, Ulisses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte-, pôs cobro a esta nefasta prática, conforme se acha estampado, com letras, palavras e sentidos inarredáveis e inexpugnáveis, no seu Art. 8º, assim exarado:

 

 

“É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

 

 

I-A lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao poder público a interferência e a intervenção na organização sindical..”

 

 

Com a promulgação da CR, de 1988, sedimentou-se a justa e imprescindível convicção de que a intervenção estatal na organização sindical brasileira estava morta para sempre- para se usar a hipérbole das Ordenações Filipinas, que vigeram no Brasil, de 1580 a 1822.

 

 

Mas, como leciona, com maestria, o incomparável escritor mineiro, Guimarães Rosa, “O correr da vida embrulha tudo..”, o correr dos vinte e cinco anos de vigência da CR embrulhou tudo, no tocante à organização sindical, que vem sofrendo clara e desautorizada intervenção do poder público, como são provas incontestes as constantes declarações de abusividade de greve, ou, a inviabilização deste direito pela fixação de percentual de trabalhadores que não podem cruzar os braços superior a 70% (setenta por cento); os inimagináveis interditos proibitórios, frequentemente, determinados, atendendo a pedidos de empresas que buscam impedir as necessárias e salutares mobilizações dos trabalhadores, até mesmo em suas proximidades; a Súmula 369, que trata do número de dirigentes sindicais com estabilidade ;e  o Precedente Normativo N. 119, que veda a cobrança de contribuição de trabalhadores não associados, ambos do Tribunal Superior do Trabalho (TST), e que são objetos de duas arguições de descumprimentos de preceitos fundamentais (ADPF), perante o Supremo Tribunal Federal (STF), que receberam os números 276 e 277, respectivamente, promovidas pela  Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), tendo como um dos procuradores o autor destas linhas.  

 

 

A isto se soma grande número de termos de ajustamento de conduta (TAC), os quais muitos sindicatos, pelo Brasil afora, são coagidos a assinar, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), um dos pilares do Estado democrático de direito; bem assim, outro tanto de inquéritos e ações civis públicas, promovidos por este órgão, contra tais entidades, por discutíveis razões.

 

 

Aqui, em Goiás, os meios de comunicação, falados e escritos, desde o inicio de dezembro de 2013, vem dando destaque à intervenção, decretada pela egrégia Justiça do Trabalho, por meio de sua 10ª Vara, no  Sindicato dos Trabalhadores das Empresas de Asseio e Conservação (Seacons), atendendo à solicitação do MPT da 18ª Região, em ação civil pública; segundo o que já foi noticiado, por corrupção ativa e passiva de seus dirigentes; sendo que a partir do referido ato judicial, este sindicato passou a ser dirigido por interventor, alheio à categoria representada.

 

 

Frise-se, desde logo, que a defenestração de dirigentes corruptos caracteriza-se como medida de primeira ordem, que deve ser aplaudida e apoiada por todos quantos almejam a construção do Estado democrático de direito; desde que sejam garantidos aos acusados os sagrados direitos ao contraditório e à ampla defesa.

 

 

No entanto, nenhum cultor da democracia pode fazer coro com a nomeação de terceiro, alheio à categoria, para dirigir qualquer entidade sindical, como sói acontecer, em Goiás, com o citado sindicato e com o das costureiras.

 

 

A Justiça do Trabalho, de reconhecida tradição democrática, desde a sua criação, em 1941, e a quem a CR reserva, em seu Art. 114, a imprescindível competência de garantir a efetivação dos direitos fundamentais individuais, quando lhe for cabível, e dos sociais, insertos nos Arts. 6º ao 11,  em todos os casos e circunstâncias; sempre que, na consecução desta efetivação, tiver que decretar o afastamento de dirigentes sindicais inservíveis à categoria e à construção da cidadania, como se verifica no realçado caso, deve, no mesmo ato, chamar a categoria, para no seu pleno direito de organização, assumir as rédeas da entidade, elegendo junta governativa provisória, com a incumbência inarredável e inadiável de promover eleições idôneas e livres, de seus novos dirigentes. Porém, jamais nomear interventor, notadamente, quando ele não é integrante da categoria. Isto, além de não condizer com a tradição e com a importância da egrégia Justiça do Trabalho, representa afrontoso atentado aos comandos da CR, a partir de seu Preâmbulo, inclusive.

 

 

Por todo o exposto, considerando-se que a Justiça do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e a livre organização sindical são colunas estruturais do Estado democrático de direito, urge que se reúnam, para que, em debate franco, leal e aberto, estabeleçam regras de conduta, para este mister, de modo que a soma dos esforços conjuntos, com cada um cumprindo e respeitando os seus desígnios constitucionais, sem invadir as competências dos outros, possa dar concretude aos objetivos da República.

 

 

O inaceitável silêncio, diante deste estado de coisas-, repita-se, violador do Estado democrático de direito, das convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e dos Tratados Internacionais dos quais o  Brasil é signatário, a começar pela Declaração dos Direitos  Universais, de 1948-, a toda evidência, conduzirá a República Federativa do Brasil àquilo que o Sociólogo Português, Boaventura de Souza Santos, afirma sobre Portugal: “Um País politicamente democrático e socialmente fascista”. Isto, com certeza, não interessa a nenhum dos três destacados atores sociais.

 

 

Ao debate e ao esforço conjunto, em prol da cidadania plena.

 

 

(José Geraldo de Santana Oliveira, assessor jurídico/Sinpro Goiás, Fitrae-BC, Fitrae MTMS, Sintrae-MS, Sintrae-MT, Sinpro Pernambuco, consultor jurídico da Contee)